A mandioca como planta de civilização e os cuidados da cunhã

Este press release foi publicado, originalmente, no Blog Scielo em Perspectiva.

Francidio Monteiro Abbate, professor na Secretaria de Estado de Educação do Pará, Belém, PA, Brasil

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No artigo Cultura Alimentar Indígena e os cuidados da Cunhã, Trocas Culturais e Educação não Escolar na Amazônia Colonialde Francidio Monteiro Abbate e Maria Betânia Albuquerque, publicado na Revista Brasileira de História da Educação, analisam-se os aspectos relacionados a mandioca e seu principal derivado, a farinha. Mas não só isso, ressalta-se o papel das mulheres indígenas como mediadoras de saberes alimentares, ao conceber a alimentação não apenas pelo viés nutricional, mas como mediadora de processos educativos e de circulação de saberes cotidianos.

A principal fonte é a obra “Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas”, escrita pelo jesuíta João Daniel, que informa a respeito da cultura alimentar da Amazônia do século XVIII. Escrita de notável capacidade de descrição e memória, o “Tesouro” diferencia-se dos demais escritos de religiosos por ser um tratado, um conjunto de estudos e propostas para melhor desenvolver as potencialidades econômicas da Amazônia. Diversas espécies animais e vegetais ganham lugar de destaque. Entre as plantas, ocupa-se, em particular, da mandioca e seus derivados.

João Daniel inicia sua narrativa por aquilo que considera o pão cotidiano, ou seja, a farinha-de-pau. O inaciano descreve quatro “castas” de farinha que se fazem das raízes da mandioca. Como atribui uma hierarquia ou “casta” entre os quatro tipos de farinha, inicia por aquela “[…] que equivale ao mais mimoso pão de trigo no seu tanto” (Daniel, 2004, p. 414): a farinha de água. Descreve de maneira pormenorizada o preparo do “mimoso pão”:

Tirada da terra a raiz da mandioca, deita-se de molho em poços ou tanques de água viva, boa, corrente […]. Depois de três dias ou pouco mais […] a tiram da água, e lhe tiram a casca, que dá com muita facilidade, e bem lavada a metem na prensa a tirar-lhe a umidade chamada tucupi, cujas prensas são de vários modos. O mais usual é um canudo de 10 a 12 palmos, que tecem de cipó, ou casca de palmeira, em cuja feitura os índios não são só bons, mas expeditos mestres. Tem prensas, a que chamam de tipiti, suas presilhas nas pontas, e na parte superior a boca, por onde lhe metem aquela massa, e logo dependurados os tipitis ou prensas em forquilhas, e puxada de baixo com algum peso, que fazem sair a aguadilha, ou tucupi (Daniel, 2004, p. 414).

Passado o momento inicial do preparo, “[…] depois de bem espremida a torram em fornos a fogo, os quais são do feitio da copa de um chapéu de sol” (Daniel, 2004, p. 414). A qualidade final da farinha dependia muito da qualidade da planta, além, é claro, “do benefício das farinheiras” (Daniel, 2004, p. 414). O resultado é a mais estimada e cara farinha produzida na Amazônia do século XVIII.

A segunda farinha é a seca, menos estimada que a primeira, teria a vantagem de se fazer de maneira mais rápida. No fabrico da farinha seca percebe-se a influência de técnicas europeias como: “[…] Rodas forradas por fora com ralos de cobre, puxada ou com engenho, ou com as mãos, e força de dois homens cada um em sua asa; e entre tanto lhe vai uma índia ministrando, e dando o que comer pelo buraco de uma tábua a mandioca” (Daniel, 2004, p. 415).

Imagem: DANIEL, J. (2004).

Figura 1. O Tesouro: Originalmente um manuscrito de 1600 páginas, é a principal fonte de informação sobre a Amazônia do século XVIII. Escrito por João Daniel no cárcere, contém informações valiosas sobre a fauna, flora e costume dos indígenas.

Nota-se que, à maneira indígena de preparo da farinha, o colonizador introduzia novos instrumentos para acelerar o processo de fabrico e, dessa maneira, atender aos anseios da empresa colonial. Mas não eram apenas objetos (de cobre, ferro), que traziam os adventícios. Também sugeriam maneiras mais sutis na produção, que levariam a uma reordenação das tarefas, o que nem sempre era aceito pelos locais.

Apontada como mais prática, o preparo da farinha seca não era bem-visto pelos trabalhadores. João Daniel justificava a resistência dizendo que: “[…] os operários gostavam pouco destas fábricas, porque no puxar das rodas suam” (Daniel, 2004, p. 415). Seria mesmo o suor a causa da pouca afeição dos “operários” pelo modo de fabrico dos europeus? Tudo indica que os motivos eram outros.

O indígena assimilou rapidamente ferramentas que facilitavam sua vida. Entretanto, em alguns aspectos resistiram às mudanças. Se o modo de preparo da farinha seca encurtava o tempo de produção, essa forma de preparo mudava o sabor, tornando a farinha menos estimada. As mudanças na forma de preparo alteravam profundamente etapas consagradas pela maneira tradicional de fabrico, alterando a organização do trabalho que, economizando em mão de obra, tirava dos trabalhadores a possibilidade de uma conversa, uma cantoria, tornando o trabalho menos sociável e muito mais repetitivo e mecânico.

A terceira espécie de farinha é a carimã ou puba, farinha mais fina extraída da mandioca. Tem especial apreço das populações tradicionais por ser de fácil digestão. Seu preparo ocorre através do peneiramento das farinhas de água e seca, descritas anteriormente.

A quarta espécie é a farinha de tapioca, obtida da seguinte forma:

Quando espremem a farinha nas prensas, aparam embaixo o tucupi, ou aguadilha, que lançam, a qual sai muita substância e muito polme, que assenta embaixo. Daqui tiram levemente por cima o tucupi, e, segredado este polme, põem este a secar nos fornos, donde saem em granitos (Daniel, 2004, p. 416).

A produção das quatro castas utiliza técnicas variadas, e por isso mesmo, não constituía um alimento tido como bárbaro, selvagem. Vejamos, como exemplo, o aproveitamento do tucupi e das folhas (maniva) para se cozer com a carne ou peixe. Ambos os preparos necessitam de domínio técnico e grande sensibilidade. Nos dois casos é tênue a linha entre o veneno e o alimento.

Até aqui só elogios do inaciano a cultura da mandioca, mas isso logo mudaria. No capítulo intitulado “Deve desterrar-se do Amazonas o cultivo da maniva e farinha-de-pau”, João Daniel arrola uma série de argumentos para justificar a erradicação da mandioca, por considerar seu cultivo rústico e causador de atraso e mau uso das terras. Argumentava o religioso que:

[…] o cultivo da maniva, ou farinha de pau, a causa de variarem todos os anos as terras no rio, ou estados do Amazonas, parece se não deviam buscar mais razões para desterrar do mundo, cultivo que, sendo o mais laborioso pede cada ano novas matas, e novas terras, não merece a atenção dos homens ainda que fosse o mais regalado manjar do mundo (Daniel, 2004, p. 168).

Mas seriam apenas essas questões que concorriam para que João Daniel propusesse o desterro do cultivo da mandioca? Consideremos os argumentos de Enrique Dussel (1993), que entende a modernidade como um fato não estritamente europeu, mas deste em relação dialética com o não-europeu. A chegada do europeu à América é o momento em que a Europa “[…] pode se definir como um ‘ego’ descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade”. Descobrir e conquistar a América marca no ego europeu o momento de transição de uma Europa periferia do mundo mulçumano para uma Europa centro da história mundial e essa transição é marcada por “[…] um ‘mito’ de violência sacrifical muito particular, um processo de ‘en-cobrimento’ do não-europeu” (Dussel 1993, p. 8).

Temos assim a base para entender a mudança do ponto de vista de João Daniel em relação à farinha. Embora reconheça a centralidade do alimento cotidiano da Amazônia, propunha sua substituição ou “en-cobrimento”. É que, no entender de Daniel (2004, v. 2, p. 195), “[…] só com as searas da Europa pode haver fartura no Amazonas”. Assim, a conquista da Amazônia colonial não era apenas um desafio territorial, era também uma missão civilizadora-espiritual. Ao propor a substituição do cultivo da mandioca pelo trigo e demais searas da Europa, João Daniel (2004, p. 171) não excluía uma justificativa “cristã”, pois, segundo ele:

Já se sabe que o trigo tem em todas as searas o primeiro lugar, porque tem em toda casta de grão a primazia, e bastava para seu abono escolher o seu e o nosso Criador, e Redentor, o pão de trigo para nele se sacramentar no venerando, e tremendo Sacramento da Eucaristia.

Substituir um alimento pagão por outro ligado à liturgia católica se fazia necessário para uma efetiva catequização e domínio simbólico do mundo colonial. Mas permaneceu a mandioca, e nessa permanência não é possível negligenciar a importância das mulheres indígenas. Na Amazônia do século XVIII, o plantio de mandioca e a produção da farinha podem ser entendidos como elementos mediadores das relações entre indígenas e europeus. As trocas culturais, mediadas pelo alimento assumem uma dimensão educativa, uma vez que traduzem o fluxo global de pessoas e as permutas entre diferentes cozinhas. Nessas trocas, as mulheres indígenas despontam como educadoras, ainda pouco reconhecidas pela historiografia, pois, se o europeu incorporou a mandioca e a farinha na sua dieta, teve que aprender a técnica adequada de cultivo e manejo da terra, seleção de espécies e seus usos diversos. Tais saberes eram transmitidos em uma pedagogia do cotidiano, na repetição diária dos gestos, nas relações de sociabilidade que atravessavam a cozinha. Ao tomar a mulher indígena como esposa ou para execução das tarefas domésticas, os adventícios trouxeram para próximo de si os saberes de que elas eram portadoras, envolvendo o trato da caça, do peixe, do preparo da farinha, beijús e tantos outros.

“Rainha do Brasil”, a farinha de pau causou discussões acaloradas que apontavam tanto suas virtudes enquanto alimento ameríndio, quanto seu atraso na construção de um mundo “civilizado” segundo a lógica do colonizador. A proposta de seu desterro não logrou sucesso; e a mandioca resiste em pleno século XXI como alimento essencial na cultura de inúmeros povos, muitos dos quais não sentem a fome saciada se não tiverem a farinha para comer. Por isso, como paraense, digo e repito a máxima popular da região: “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Para ler o artigo, acesse

ABBATE, F.M. and ALBUQUERQUE, M.B.B. Cultura alimentar indígena e os cuidados da cunhã, trocas culturais e educação não escolar na Amazônia colonial. Revista Brasileira De História Da Educação [online]. 2024, vol. 24, e340 [viewed 21 October 2024]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v24.2024.e340. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/BBnDtfJBKVMhYfzgFRD8Dzy/

Referências

DANIEL, J. Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas (v. 1 e 2). Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

DUSSEL, E. 1492: O encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.

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