Novo Ensino Médio resgata “educação para o trabalho” e mantém fantasmas da desigualdade educacional

O conteúdo abaixo é um Press Release da RBHE postado originalmente no Blog SciELO em Perspectiva, do SciELO.

Samuel Oliveira, Professor e pesquisador Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Tereza Fachada Cardoso, Professora aposentada do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Maria Renilda Barreto, Professora aposentada do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Logomarca do periódico: Revista Brasileira de História da Educação

Uma educação para o trabalho! O mote tem sido repetido em diferentes tempos sociais ao longo da história do Brasil e do capitalismo. E está presente no chamado Novo Ensino Médio, na reforma da Lei de Diretrizes e Bases da Educação implementada em 2017, quando se ampliou o tempo mínimo do estudante na escola e alterou o currículo. Com a chamada “flexibilização” curricular por meio dos itinerários formativos, tem-se a possibilidade do ensino técnico e profissional integrar a educação básica. Assim, reforça-se o vínculo entre este nível de ensino e o mercado de trabalho.

Este recente processo se dá em meio ao esquecimento dos vários projetos educacionais que embalaram a modernização do Brasil ao longo da História, bem como as sociabilidades decorrentes das próprias instituições escolares no passado. E não é surpresa que a efeméride dos 80 anos da Lei Orgânica do Ensino Industrial (1942), em 2022, tenha passado despercebida nos discursos jornalísticos e de atualidade que falam do Novo Ensino Médio. Afinal, essa norma escancara a forma dualizada como foi organizado o acesso a educação no Brasil, com um grupo direcionado à universidade/“científico” e outro destinado ao trabalho/“técnico”. E lembrar da implementação do ensino técnico-industrial é levantar os fantasmas das desigualdades no acesso à educação que persistem, atualmente, na implementação do Novo Ensino Médio.

Imagem: Arquivo da Associação de Ex-Alunos da Escola Técnica Nacional e Centro Federal de Educação Tecnológica.

Figura 1. Fachada principal do edifício da Escola Técnica Nacional, na entrada pela Avenida Maracanã, [1940/1950].

O artigo Escola Técnica Nacional: história oral, memória e cotidiano de uma instituição escolar (1942-1965), publicado na Revista Brasileira de História da Educação, aborda justamente o ensino técnico-industrial. É fruto de um trabalho de pesquisa e ensino realizado no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) pelos professores Samuel Oliveira, Tereza Fachada e Maria Renilda. Analisa a experiência do ensino industrial a partir da oralidade dos ex-alunos, ao invés dos discursos dos professores e das retóricas oficiais do Estado em seus projetos de modernização.

Assim, coloca-se no centro das reflexões as memórias que foram coletadas na Associação de Ex-Alunos da Escola Técnica Nacional e Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. Os pesquisadores fizeram uma parceria com a associação para escrita do livro A Escola que mudou a minha vida (2018), quando foram recolhidos setenta testemunhos sobre a experiência escolar e o significado da escola para a vida dos mesmos. A partir desse material constituído com a metodologia de História Oral e História Pública, foram selecionadas dezenove memórias de ex-alunos(as) que realizaram sua formação no ensino industrial da Escola Técnica Nacional (ETN).

Imagem: Arquivo da Associação de Ex-Alunos da Escola Técnica Nacional e Centro Federal de Educação Tecnológica.

Figura 2. Participação dos alunos da Escola Técnica Nacional (ETN) em desfile cívico no centro do Rio de Janeiro, [1950/1960].

A instituição ETN foi criada em 1942, durante o Estado Novo (1937-1945), e serviu como referência para o projeto de educação técnica estabelecido durante o desenvolvimento urbano-industrial brasileiro. A estrutura da escola, seus cursos e seu projeto educacional e institucional sofreram poucas alterações até o início dos anos 1960; a mudança na estrutura produtiva brasileira motivada pelas transformações do desenvolvimentismo de JK e o impulso de novas reformas educacionais na educação técnica impulsionaram significativas transformações no ensino industrial e na estrutura da escola. No período, a maior parte dos estudantes das escolas técnicas sofria com a interdição do acesso ao ensino superior pelas normas legais, e tinha sua trajetória de vida marcada pelo ingresso prematuro no mercado de trabalho.

A trajetória e memória dos ex-alunos(as) refletem em grande medida o projeto educacional do ensino industrial. Nela, percebe-se como o público da instituição era majoritariamente masculino, oriundo de famílias operárias que enxergavam no ensino industrial um caminho para a ascensão social e qualificação para o trabalho nas indústrias. A referência a Getúlio Vargas e ao trabalhismo aparece no quadro da memória social dos ex-alunos, sendo que alguns assistiram a inauguração da escola feita por Vargas durante o Estado Novo. Maior parte dos testemunhos foram de estudantes que realizaram o curso básico industrial, modalidade que teve fim na ETN em 1965.

Imagem: Arquivo Geral do CEFET-RJ.

Figura 3. Pátio da escola, ou “bosque” – lugar afetivo para estudantes de ontem e hoje [1980/1990].

As memórias também se relacionam a uma sociabilidade escolar marcada pelo sexismo. Os apelidos entre os homens, a posição minoritária das mulheres e divisão de gênero na aprendizagem de ofícios, e a trajetória dos “meninos” e “meninas” após saírem da escola, compõem um repertório de sinais que evidenciam como o projeto de ensino industrial articulava-se com um ideal patriarcal de trabalhador, vinculado ao status de chefe de família.

A oralidade dos ex-alunos desvenda um cotidiano escolar e uma estrutura de micropoderes que permeava a formação da escola e a subjetividade dos estudantes. O texto nos coloca a seguinte pergunta: quais serão as sociabilidades e subjetividades que atravessaram a formação dos estudantes no Novo Ensino Médio? Além disso, evidencia que o capitalismo periférico brasileiro está sempre disposto a atualizar o mote “educação para o trabalho” em projetos de modernização que desconsideram os desafios dos cotidianos escolares experimentados por professores e estudantes.

Referências

CARDOSO, T.F.L. Um acervo da memória nacional: o arquivo do CEFET-RJ. In: NASCIMENTO, A. and CHAMON, C.S. (org.) Arquivo e história do ensino técnico no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

SCHWARTZMAN, S., BOMENY, H.M.B. and COSTA, V.M.R. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000.

SILVEIRA, Z.S. Contradições entre capital e trabalho: concepções de educação tecnológica na reforma do ensino médio e técnico. Jundiaí: Paco, 2010.

WEINSTEIN, B. (Re)formação da classe trabalhadora no Brasil (1920-1964). São Paulo: Cortez, 2000.

Para ler o artigo, acesse

OLIVEIRA, S., CARDOSO, T.F. and BARRETO, M.R. Escola Técnica Nacional: história oral, memória e cotidiano de uma instituição escolar (1942-1965). Rev. Bras. Hist. Educ. [online]. 2023, vol. 23, e242 [viewed 14 February 2023]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e242. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/nTTJxWLtwpBbjDD3Mcx6LRB/

Links externos

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